DECISÃO
1. Trata-se de pedido de alteração das frações/percentuais para progressão de regime sob o argumento de que o crime de tráfico de drogas não pode ser considerado hediondo ou equiparado (mov. XX) após a entrada em vigor da Lei n.13.964/2019 (pacote anticrime) .
O Ministério Público manifestou-se pelo indeferimento do pedido (mov. XX).
É o relatório. DECIDO.
2. DA ALTERAÇÃO DAS FRAÇÕES PARA PROGRESSÃO DE REGIME
Dispõe o a art. 66, inc. I da LEP: “Compete ao Juiz da execução: I- aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.”
Súmula 611 do STF: “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”.
Sem embargo dos louváveis argumentos do Parquet, as teses Defensivas merecem prosperar, vejamos:
O ordenamento jurídico brasileiro se vale do sistema legal para definir quais crimes são considerados hediondos, através do sistema legal cabe ao legislador definir, de forma exaustiva (numerus clausus), os crimes que devem ser considerados hediondos, o que atribui segurança jurídica na aplicação da Lei (BRASILEIRO, 2020)1.
Acerca do tema convém destacar trecho da doutrina de Renato Brasileiro de Lima:
Lado outro, se a infração penal praticada pelo agente não constar do art. 1° da Lei nº 8.072/90, jamais será possível considerá-la hedionda, ainda que as circunstâncias fáticas do caso concreto se revelem extremamente gravosas. Afinal, por força da adoção do sistema legal, os crimes hediondos constam do rol taxativo do art. 1 ° da Lei nº 8.072/90, que não pode ser ampliado com base na analogia nem por meio de interpretação extensiva (BRASILEIRO, 2020)2.
A Constituição Federal em momento algum define quais são os crimes hediondos ou mesmo quais crimes a eles seriam equiparados, apenas fixa alguns patamares abaixo dos quais a intervenção penal não se pode reduzir, que são chamados de “mandados constitucionais de criminalização”, como é o caso do art. 5°, inciso XLIII, da Constituição Federal:
[…] XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; […].
Resta claro da leitura do referido artigo que a Constituição Federal apenas estabelece algumas vedações aos crimes de tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, assim como aos crimes hediondos no tocante à concessão de graça, anistia e fiança, nada determinando quanto à exigência de critérios mais gravosos para progressão de regime.
Verifica-se da Lei n° 8.072/90 que o crime de tráfico de drogas não está inserido no rol de crimes hediondos, previsto no art. 1° da referida Lei, sendo que a referida Lei de Crimes Hediondos agora, além das vedações impostas pela Constituição Federal, ainda insere nova vedação à concessão de indulto, conforme art. 2° inciso I, novamente sendo silente quanto aos critérios de progressão de regime.
Com a edição da Lei n° 11.464/07 passou a existir determinação expressa legal estabelecendo critérios mais gravosos para progressão de regime no caso de cometimento do tráfico de drogas:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (…)
§2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
Contudo, após a entrada em vigor da Lei n° 13.964/2019 houve a revogação do parágrafo 2º, do art. 2º, da Lei nº 8.072/1990, deixando de existir qualquer previsão legal que determine que a progressão de regime em caso de condenação pelo crime de tráfico de drogas possui requisitos mais gravosos.
A Lei de Execuções Penais, que também foi alterada pelo Pacote Anticrime (Lei n° 13.964/2019, passou a prever diversas regras para progressão de regime, dentre as quais:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
[…] V – 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário;
[…] VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado.
Ocorre que não existe qualquer legislação que estabeleça quais são os crimes equiparados a hediondos para fins de progressão de regime, de modo que não é possível considerar que a situação pode ser resolvida mediante simples interpretação extensiva, já que esta ocorre quando existe uma norma e seu alcance é ampliado.
No presente caso, não existe norma para o caso concreto, uma vez que adotado o critério legal, na medida em que apenas a lei pode expressamente determinar quais são os crimes hediondos e quais crimes são equiparados a hediondos. Logo, não se está diante de um caso de interpretação extensiva, podendo ser considerado no máximo um caso de analogia para suprimir a lacuna deixada pela Lei. Contudo, tal forma de integração da lei só pode ser aplicada em benefício do réu/sentenciado, o que evidentemente não é o caso.
O fato de a Carta Magna fixar mandados constitucionais de criminalização em relação ao crime de tráfico de drogas iguais aos fixados aos crimes hediondos (art. 5° XLIII, da CF) não significa que existe uma “equiparação”, afinal a norma constitucional em momento algum utiliza tal expressão, nem existe qualquer Lei que classifique/estabeleça quais crimes são “equiparados a hediondos”, tratando-se de construção doutrinária e jurisprudencial.
Em que pese a relevância doutrinária e jurisprudencial, em razão do princípio da legalidade (formal e material) e do sistema legal adotado, só cabe ao legislador estabelecer quais crimes são equiparados a hediondos por meio de Lei, o que não o fez. Assim, considerar o crime de tráfico de drogas como “equiparado” a hediondo para todos os efeitos, viola sobremaneira a lex stricta e os princípios elencados.
Não é dado ao Poder Judiciário a possibilidade de suplantar o legislador em razão da omissão acerca do tema. Ademais, o ato de interpretar consiste em identificar a vontade da lei, definir seu conteúdo, seu significado, seu alcance e deve sempre se buscar a mens legis, ou seja, a vontade da lei e não a mens legislatoris, que é a vontade do legislador, assim, se a Lei não estabelece quais crimes são equiparados a hediondos, não há possibilidade de interpretar, extensivamente ou não, o que não existe.
Há que se esclarecer ainda que não se está dizendo que o crime de tráfico de drogas não é grave o suficiente para merecer uma punição mais gravosa, contudo, possibilitar ao Poder Judiciário definir quais crimes são hediondos ou equiparados culminaria na adoção do sistema judicial, que conforme já ressaltado não foi o sistema adotado pela Lei de crimes hediondos e pela Constituição Federal. Ademais, consagrar o sistema judicial acarretaria em evidente insegurança jurídica, já que pautado na discricionariedade de cada julgador.
Dessa forma, considerando a inexistência de norma legal que preveja o crime de tráfico de drogas como equiparado a hediondo, uma vez que o crime em questão não é praticado com violência ou grave ameaça, aos tráficos praticados antes da vigência do Pacote anticrime deve ser adotado o percentual de 16% para a progressão de regime, tanto aos condenados primários, quanto aos condenados reincidentes.
Já aos tráficos praticados após à vigência do Pacote anticrime deve ser adotado o percentual de 16% para a progressão de regime, em relação aos condenados primários, e o percentual de 20% aos condenados reincidentes.
No caso em apreço, verifica-se que o sentenciado é condenado nos autos n° XX pela prática do crime de tráfico de drogas ocorrido em XX, ou seja, antes/depois da vigência do Pacote Anticrime, e é primário/reincidente, assim, deve ser aplicado o percentual de XX para progressão de regime, em relação a referida condenação.
2.1. Ante toda a fundamentação exposta, considerando a inexistência de norma legal que estabeleça quais crimes são equiparados a hediondos e por não estar o tráfico hediondo previsto no art. 1°, da Lei n° 8.072/90, DEFIRO o pedido da Defesa e determino a alteração da fração/percentual para progressão de regime, passando a contar o percentual de XX% em relação ao crime de tráfico de drogas, referente a condenação dos autos n° XX.
Anote-se no RESPE.
3. Realizadas as alterações se constatado que o apenado faz jus a algum direito apontado pelo sistema, instaure-se o incidente pertinente e abra-se vista às partes para manifestação urgente.
Intimem-se.
Diligências necessárias.
Cascavel, data da assinatura digital.
CLAUDIA SPINASSI
Juíza de Direito
1 Lima, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único 8°. ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2020.
2 Lima, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único 8°. ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2020.