DECISÃO JUDICIAL – Unificação de Penas – Continuidade Delitiva – Ausência Homogeneidade Subjetiva

DECISÃO

1. Trata-se de incidente de unificação das penas, instaurado pela Defesa em favor do apenado XX, no qual pretende o reconhecimento da continuidade delitiva dos crimes praticados nos autos nº XX e XX (mov. XX).

O Ministério Público em sua manifestação pugnou pelo deferimento do reconhecimento da continuidade delitiva (mov. XX).

É o relatório. DECIDO.

2. A Defesa pretende o reconhecimento da continuidade delitiva nos seguintes processos:

a) Autos nº XX: O apenado foi condenado pelo crime de roubo majorado pelo emprego de arma de fogo e concurso de pessoas, cometido nos dias XX de XX de XX, houve o reconhecimento do concurso formal perfeito e da continuidade delitiva específica, com pena total de XX de Reclusão, com trânsito em julgado em XX (mov. XX).

b) Autos nº XX: O apenado foi condenado pelo crime de roubo majorado pelo emprego de arma de fogo, concurso de pessoas e restrição da liberdade da vítima, cometido no dia XX de XX de XX, no qual houve o reconhecimento do concurso formal, com pena total de XX de Reclusão, com trânsito em julgado em XX (mov. XX).

2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:

A continuidade delitiva é possível, nos termos do art. 71, do Código Penal:

Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

 

O instituto é baseado em razões de política criminal. O juiz, em vez de aplicar as penas correspondentes aos vários delitos praticados pelo agente, considera, por ficção jurídica, somente para aplicação da pena, a prática de um só crime pelo agente, que deve ter a sua reprimenda majorada.

Conforme a LETRA da lei, o crime continuado tem como requisitos a pluralidade de condutas, a pluralidade de crimes da mesma espécie (aqueles protegendo igual bem jurídico), o elo de continuidade por meio das mesmas condições de tempo, lugar e à mesma maneira de execução, além de outras circunstâncias semelhantes (quaisquer outras circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade).

Alguns tribunais superiores têm adotado a orientação de que se exige também homogeneidade subjetiva, ou seja, seria imprescindível que os vários crimes resultassem de plano previamente elaborado pelo agente, isto para distinguir crime continuado de habitualidade criminosa.

Com o devido respeito, cremos que a exigência deste plano unitário decorre de um equívoco de interpretação causado pela não diferenciação entre o verdadeiro crime continuado e aquele previsto no Art. 71 do Código Penal que nada mais é que uma ficção jurídica, ou seja, um falso crime continuado.

Conforme ensina Zaffaroni:

Há séculos o direito penal busca atenuar as consequências da soma aritmética das penas, por meio da aplicação de uma teoria, que reconhece a existência de um único crime em alguns casos em que há reiteração de fatos, com uma única decisão do autor, e que, também, com o saudável objetivo de diminuir os sempre graves efeitos da somatória das penas, amplia o conceito até o estabelecimento de uma ficção de crime único. Ao crime único (reiteração, com um único dolo ou decisão para a prática de crime), chamou-se de “crime continuado”, mas também foi chamada de “crime continuado” a ficção utilizada para estendê-lo a outras hipóteses, de verdadeiros concursos reais ou materiais (Zaffaroni & Pierangelli, 2011, p. 618).

Para que exista um verdadeiro crime continuado é essencial a presença da unidade resolutiva do agente, ou seja, de um plano unitário (unidade de decisão). O dado ôntico mais elementar e primário de qualquer unidade de conduta é o fator psicológico ou fator final, isto é, uma unidade de dolo ou de resolução, uma resolução ou dolo unitário: se quem furta diariamente uma pequena quantidade de dinheiro não age com uma decisão única, como, por exemplo, apoderar-se do dinheiro que necessita para pagar uma dívida ou para comprar um objeto, mas repete a decisão diariamente, porque se sente tentado diante da mesma circunstância, não haverá uma continuidade da conduta, e sim tantas condutas quantas forem as decisões tomadas. Nesse caso, como não há unidade de conduta, não há o verdadeiro crime continuado; o que existe é uma unidade da culpabilidade, em razão da unidade de circunstância, o que torna o concurso real privilegiado – o falso crime continuado do art. 71 (Zaffaroni & Pierangelli, 2011, p. 621).

Deste modo, o Art. 71 do Código Penal brasileiro contém uma fórmula de abrandamento da regra da cumulação aritmética do art. 69, que recebe o nome de “crime continuado”, mas que, onticamente, não é um verdadeiro crime continuado, pelo total predomínio de critérios objetivos.

Referido artigo prevê uma hipótese de falso crime continuado ou concurso material atenuado, estabelece o sistema de pena de acordo com a regra da exasperação (de um sexto a dois terços) no seu grau maior de atenuação (art. 71, caput), e, até o triplo, no grau de menor atenuação.

A análise da doutrina e jurisprudência realizada em torno dos requisitos do falso crime continuado revela uma grande diversidade de critérios, e, portanto, uma grande incerteza jurídica. A denominação de “crime continuado” levou uma parte das manifestações a fixar exigências que a lei não faz: a unidade resolutiva.

Em verdade, no “crime continuado” do art. 71 do Código Penal o que existe é uma continuidade das circunstâncias motivadoras, ou seja, uma sorte de culpabilidade unitária. Está bem claro, no texto do art. 71, que as circunstâncias a que ele se refere são aquelas que fazem parte da culpabilidade, as que rodeiam as motivações do sujeito, ou seja, as que permitem falar em uma culpabilidade que, por causa da continuidade das circunstâncias motivadoras, não é independente, ou melhor, não pode ser julgada desvinculada da culpabilidade do crime anterior (Zaffaroni & Pierangelli, 2011, p. 629).

Por tudo isso, temos que o Art. 71 do Código Penal brasileiro não exige a tal homogeneidade subjetiva.

Assim, considerando que um dos preceitos fundamentais do direito penal é a vedação da interpretação da lei contra os direitos do acusado/condenado, se a lei penal NÃO EXIGE a homogeneidade subjetiva, temos que a inclusão dessa exigência por parte dos tribunais fere frontalmente o princípio da interpretação mais benéfica ao réu.

Vale ressaltar, ainda, que na própria exposição de motivos do Código Penal resta clara a opção do legislador pelo critério puramente objetivo: “59. O critério da teoria puramente objetiva não se revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva” (https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-exposicaodemotivos-148972-pe.html).

Posto tudo isso, este Juízo adota o critério da teoria puramente objetiva, discordando respeitosamente do posicionamento de tribunais superiores.

Passo à análise do caso presente:

2.1. DA CONTINUIDADE DELITIVA ENTRE OS AUTOS Nº XX e XX

Compulsando os autos percebe-se que os crimes descritos nas referidas ações penais preenchem os requisitos necessários para serem considerados em continuidade delitiva, vejamos:

Percebe-se que ambos os crimes foram cometidos nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e maneiras de execução, quais sejam: mediante o rompimento de obstáculo, em concurso de pessoas, na mesma Comarca, em bairros próximos e em estabelecimentos comerciais.

Da simples narrativa dos fatos, resta evidente que o acusado agiu dolosamente, e mediante mais de uma ação, praticou XX crimes de roubo.

O crime continuado ocorre quando o agente comete dois ou mais crimes da mesma espécie, mediante mais de uma conduta, sendo que os mesmos possuem semelhanças de circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução, e etc.

O percentual de aumento da pena, no crime continuado varia de acordo com o número de infrações penais praticadas.

É firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o número de infrações cometidas deve ser considerado quando da escolha da fração de aumento decorrente da continuidade delitiva, dentre os parâmetros previstos no caput do art. 71 do Código Penal, sendo 1/6 para a hipótese de dois delitos até o patamar máximo de 2/3 para o caso de 7 infrações ou mais (STJ, HC 367.448/ES, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 26/09/2016).

No crime continuado (art. 71, caput, do Código Penal), o aumento da pena entre o intervalo de 1/6 a 2/3 deve se dar em função do número de delitos cometidos. No caso em tela, reconhecida, pelo Tribunal de origem, a prática de três delitos, o acréscimo deve ser de 1/5 (STJ, HC 305.109/SP, Rel. Min. Ericson Maranho, Desembargador convocado do TJ-SP, 6ª T., DJe 30/06/2015).

Segundo a orientação jurisprudencial desta Corte Superior de Justiça, o aumento da pena pela continuidade delitiva se faz tão somente em razão do número de infrações praticadas (critério objetivo) (STJ, HC149897/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª T., DJe 3/5/2011).

Para a fixação do quantum de aumento de pena, em casos de crime continuado comum, o STJ tem adotado o seguinte posicionamento:

HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2.°, I E II, POR DUAS VEZES, NA FORMA DO ART. 71, E ART. 288, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ESPECIAL. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) MAJORANTES. QUANTUM DE ACRÉSCIMO. SÚMULA Nº 443 DESTA CORTE. ILEGALIDADE MANIFESTA. (3) CONTINUIDADE DELITIVA. QUANTUM DE AUMENTO. NÚMERO DE INFRAÇÕES. (4) NÃO CONHECIMENTO. ORDEM DE OFÍCIO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial. 2. Em se tratando de roubo com a presença de mais de uma causa de aumento, o acréscimo requer devida fundamentação, com referência a circunstâncias concretas que justifiquem um aumento mais expressivo, não sendo suficiente a simples menção ao número de majorantes presentes para o aumento da fração. Súmula n.º 443 desta Corte. Ilegalidade flagrante. 3. É pacífica a jurisprudência deste Sodalício, em se tratando de aumento de pena referente à continuidade delitiva, aplicando-se a fração de aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5, para 3 infrações; 1/4, para 4 infrações; 1/3, para 5 infrações; 1/2, para 6 infrações; e 2/3, para 7 ou mais infrações. Na espécie, observando o universo de 2 (duas) infrações cometidas pelo réu, por lógica da operação dosimétrica, deve-se considerar o aumento de 1/6 (um sexto). 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, no tocante à Ação Penal n° 050.09.087780-2, Controle n° 1.684/09, da 11.ª Vara Criminal Central/SP, a fim de reduzir a reprimenda do paciente para 7 (sete) anos, 3 (três) meses e 3 (três) dias de reclusão, mais 16 (dezesseis) dias-multa, mantidos os demais termos da sentença e do acórdão. (HC 265.385/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 08/04/2014, DJe 24/04/2014).

Verifica-se no presente caso que o apenado cometeu XX crimes de XX, dessa forma, em observância à jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, o aumento deve ser fixado em XX da pena mais grave que lhe foi aplicada, vez que foram praticados dois crimes.

Portanto, RECONHEÇO A CONTINUIDADE DELITIVA E UNIFICO AS PENAS APLICADAS NOS autos nº XX e XX, vez que restou demonstrado que o crime subsequente é uma continuação do primeiro, pois cometidos nas mesmas condições de tempo, lugar e com maneira de execução semelhante.

Considerando que se tratam de penas diversas já dosadas pelos juízos das condenações, APLICO AO SENTENCIADO A PENA MAIS GRAVE (XX de Reclusão/Detenção), aumentada de XX, percentual que reputo necessário ante a quantidade de crimes contra o patrimônio praticados de forma reiterada e em observância à jurisprudência consolidada do STJ.

Assim, passa a PENA TOTAL DO SENTENCIADO A SER DE XX DE RECLUSÃO/DETENÇÃO.

Neste sentido, uma vez que reconhecida a continuidade, RETIFIQUE-SE o RESPE anotando-se nos incidentes a adequação da pena referente às condenações dos autos nº XX e XX.

Anote-se no RESPE.

Publicada e registrada pelo SEEU.

Intimem-se.

Intimações e diligências necessárias.

Cascavel, datado automaticamente.

CLAUDIA SPINASSI
Juíza de Direito


1 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal / Guilherme de Souza Nucci. – 16. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020. Pág. 693

2 MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1. 13. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019. Pág. 1096

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest
Sessão Diagnóstica

Quer uma reunião com nossa equipe para ajudar a definir um rumo para sua carreira?