No turbulento cenário jurídico brasileiro, onde a transformação é uma das poucas constantes, a legislação sobre pena para porte de armas de fogo assume uma natureza quase camaleônica. A agitação recente provocada pela promulgação do Decreto 11.615, em 21 de julho de 2023, evidencia essa dinâmica.
Este decreto trouxe mudanças significativas na regulamentação de armas no país, impactando não só na questão econômica, mas atingindo diretamente a esfera penal. Essas alterações exigem dos juristas uma adaptabilidade e prontidão únicas para atuar em um campo legal sempre em fluxo. Neste artigo, exploraremos as evoluções e implicações das normas jurídicas relacionadas ao porte e posse de armas de fogo e os efeitos do último decreto presidencial na execução penal e no âmbito criminal como um todo.
Para começar, é importante recordar que a regulamentação de forma mais significativa do comércio e uso de armas de fogo no Brasil ocorreu com a publicação do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), que estabeleceu um divisor de águas na forma como a nação tratava os calibres de armas e sua posse. Com a autoridade gravada nessa norma, o Exército esculpiu a primeira portaria regulamentadora, delineando claramente os calibres que seriam acolhidos sob a égide da permissão, e aqueles que seriam categorizados como de uso restrito dentro das fronteiras do país.
Nessa atmosfera legislativa, a posse e o porte de armas de fogo, sejam de uso permitido ou restrito, foram claramente definidos como crimes, com penas variadas. A posse irregular de uma arma de uso permitido pode resultar em detenção de 1 a 3 anos, além de multa, conforme o Artigo 12. Já o porte ilegal de uma arma de uso permitido leva a uma pena de reclusão de 2 a 4 anos, mais uma multa, de acordo com o Artigo 14. Em casos mais graves, a posse ou o porte ilegal de uma arma de uso restrito pode acarretar reclusão de 3 a 6 anos, acompanhada de multa, segundo o Artigo 16. Essas classificações não são meramente técnicas, mas refletem um período histórico e político no Brasil que demonstra uma inclinação para o desarmamento da população civil.
Mudanças em 2019: Decretos nº 9.847/2019 e Portaria nº 1222/2019
No ano de 2019, sob um governo mais favorável à liberação do porte de armas para os cidadãos, houve mudanças significativas nas regras. Essas alterações foram principalmente representadas pelo Decreto nº 9.847/2019 e pela Portaria nº 1222/2019. Esses documentos legais reformularam a classificação dos calibres de armas, expandindo consideravelmente a lista de calibres de uso permitido.
A Portaria nº 1222/2019, especificamente, promulgada pelo Comando do Exército, foi uma mudança radical na política de armas do país. Mais do que um simples ajuste técnico, ela redefiniu as normas sobre o que era legalmente aceitável em relação ao porte de armas, transformando vários calibres, que antes eram estritamente classificados como de uso restrito, em calibres agora permitidos para o uso geral da população.
Promulgação do Decreto 11.615 em julho de 2023
Em um momento recente, marcado por uma mudança na atmosfera política e histórica, o dia 21 de julho de 2023 trouxe a promulgação do Decreto 11.615. Essa legislação significou uma virada notável na abordagem do Brasil sobre a regulamentação de armas de fogo, introduzindo uma classificação mais restritiva dos calibres permitidos. A nova regra diminuiu substancialmente a variedade de calibres categorizados como de uso permitido, sinalizando uma política mais rigorosa e controlada no que se refere ao uso de armas de fogo pelos cidadãos no país. Essa mudança reflete um aperto nas regras, alinhado a uma perspectiva mais cautelosa em relação ao acesso a armas de fogo.
Em meio a essa complexa “salada” jurídica, repleta de atos normativos distintos e impregnada por ideologias políticas tão variadas, surge a pergunta intrigante e vital: como determinar qual norma realmente se aplica em uma situação específica? A confusão e o emaranhado de leis criam um labirinto legal, desafiando cidadãos e profissionais do direito a encontrar o caminho certo.
Desafios e Implicações na Regulamentação de Armas de Fogo no Brasil
Para ilustrar essa complexidade jurídica, imaginemos a seguinte situação: um cidadão é preso em 2018 com uma arma de calibre 9mm. Na época, esse calibre era categorizado como de uso restrito. No entanto, a Portaria n. 1.222 mudou o status desse calibre para permitido e, mais recentemente, o novo Decreto o reclassificou novamente como restrito. Assim, onde essa conduta se enquadra no Estatuto do Desarmamento? Trata-se de um porte ilegal de arma de uso permitido, que pode acarretar uma pena de até 4 anos de reclusão, ou de um porte ilegal de arma de uso restrito, cuja pena máxima é de 6 anos?
E se esse cidadão já foi condenado por este crime: é possível aplicar alguma redução de pena em seu favor? Além disso, com a promulgação do novo Decreto de armas, existe o risco de sua pena ser aumentada?
Essas perguntas revelam os detalhes complexos e os desafios legais que podem emergir em uma paisagem legislativa sempre em fluxo, particularmente no que diz respeito à regulamentação de armas de fogo no Brasil.
Compreendendo o Estatuto do Desarmamento
Para abordar essas questões, é necessário compreender a natureza do Estatuto do Desarmamento. Essa lei funciona como uma “norma penal em branco”, o que significa que ela precisa ser complementada por outro ato normativo para definir completamente os crimes associados. No contexto do Estatuto do Desarmamento, o preceito secundário, que estabelece a pena, está completo. No entanto, o preceito primário, que descreve a conduta criminosa, exige complementação. Esse complemento é fornecido por um ato normativo que esclarece quais calibres são considerados de uso permitido e restrito.
Assim, qualquer mudança no ato normativo complementar afeta diretamente a classificação da conduta de uma pessoa. Em outras palavras, se os calibres mudam de permitidos para restritos, ou vice-versa, isso reflete na forma como a conduta do indivíduo é enquadrada sob a Lei n. 10.826/2003.
Vamos tomar como exemplo o ato de portar ilegalmente uma arma de fogo de calibre 9mm, cometido em 2018. Na época, essa ação era enquadrada no Artigo 16 da Lei n. 10.826/2003, como porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. No entanto, com a publicação da Portaria n. 1.222/2019, essa mesma conduta, realizada em 2018, passou a ser considerada sob o Artigo 14, como porte ilegal de arma de fogo de uso permitido.
Essa situação é resultado da aplicação do princípio da irretroatividade da lei penal, que afirma que a lei penal não pode retroagir, exceto quando for para beneficiar o réu. No exemplo citado, a Portaria n. 1.222/2019 favoreceu o réu ao reclassificar o calibre 9mm de restrito para permitido. Portanto, seus efeitos retroagem a 2018, beneficiando esse réu. Assim, a conduta de “portar ilegalmente uma arma de fogo de calibre 9mm” passa a ser tratada como um crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, em vez de uso restrito.
Da mesma forma, o novo Decreto de armas – Decreto n. 11.615/2023 – não pode retroagir para prejudicar a situação do réu. No caso do exemplo em que o porte de uma arma de calibre 9mm ocorreu em 2018, a regra aplicável é a estabelecida na Portaria n. 1.222/2019. Portanto, será considerado porte de arma de fogo de uso permitido, já que essa norma retroage por ser mais benéfica ao réu. Em contraste, o novo decreto de 2023 não pode ser aplicado retroativamente, uma vez que seria prejudicial.
Essa aplicação da lei também se estende à execução penal, conforme estabelecido no art. 66, I da Lei de Execuções Penais. No caso citado, se o réu tiver sido sentenciado sem a aplicação retroativa da Portaria n. 1.222/2019, é possível recorrer a um incidente de adequação da pena. Isso permitiria a aplicação da referida portaria, resultando em uma nova classificação do crime, enquadrando-o no art. 14. Consequentemente, a pena seria reduzida.
A complexidade do cenário legislativo atual, com frequentes mudanças na regulamentação da posse e porte de armas de fogo, sublinha a necessidade de cuidado e precisão na aplicação da lei. No entanto, por meio de toda essa teia de normas, o princípio fundamental que guia tanto o Direito Penal quanto a execução penal é a irretroatividade da lei penal: uma nova lei não pode retroagir, exceto quando for em benefício do réu.
É vital ter em mente que existem pessoas atualmente encarceradas, cumprindo sentenças por porte e posse ilegal de armas de fogo de uso restrito, cujo status mudou para permitido pela Portaria n. 1.222/2019. Esses indivíduos têm o direito a uma redução de pena através do incidente de adequação da pena. Tal redução pode variar de 1 a 2 anos e exige a assistência de um advogado competente.
O contexto legal em constante evolução torna a prática do Direito uma tarefa desafiadora e sublinha a importância de profissionais qualificados, bem informados e comprometidos em defender os direitos de seus clientes. Neste ambiente, o entendimento correto e a aplicação justa da lei não são apenas um ideal, mas uma necessidade prática e ética.